29 de jun. de 2007

Enxurrada

A enxurrada corria as ruas confusas do Centro. Os semáforos piscavam em verde, alaranjado e vermelho, deixando passar ocasionalmente um carro em cautelosa velocidade. A Praça do Relógio, normalmente nunca em absoluto adormecida, estava quase vazia – apenas dois táxis na esquina. Nenhum boteco aberto em parte alguma da Cidade Horizontal. Nenhuma puta no Médio Meretrício. Nenhum garoto de programa nas imediações da Boulevard Éden. Nenhum travesti fazendo ponto na Via Expressa. Caía a maior chuva dos últimos trinta anos e só isso, e somente ela tocava as ruas naquela noite. Era madrugada de quinta para sexta-feira.

Perdida entre alguns poucos perdidos desconhecidos da noite horizontal, numa mesa de boteco do andar térreo do Edifício Atíria, ela virava sua quinta dose de pinga. A sombra em torno dos olhos inchados de tanto chorar estava borrada. O batom ficara parte no copo e fora parte dissolvido pelo álcool. Os cabelos já estavam ensebados devido ao sestro que ela tinha de passar os dedos incontrolavelmente, em especial quando estava nervosa ou embriagada – e estava os dois. A bolsa, que a principio estava colocada na cadeira ao lado, encontrava-se agora jogada sobre a mesa, logo ao lado de um cinzeiro lotado, com um cigarro aceso depositado no suporte. Bateu o copo com força sobre a mesa, chamou o homem do boteco, que não era bem um garçom, e lhe entregou uma quantidade de dinheiro embolado e amassado que pagaria dez vezes o que havia consumido – o homem, bobo que não era, nada disse. Ela juntou seus troços, pendurou a bolsa no ombro, levantou-se ameaçando desmoronar e levou o cigarro aos lábios, saiu cambaleante.

Cabelos pretos e lisos, a altura dos ombros. Olhos intensamente verdes. Nariz fino, com narinas levemente abertas. Lábios vermelhos e em forma de coração, com volume razoável, desenhados numa boca discreta e recheada de dentes brancos e alinhados. A pele era branca como a neve e lisa como a seda. Seus traços eram de uma delicadeza quase infantil. O nome era Tereza e tinha seus vinte e cinco anos.

Tereza cambaleou até a entrada do Atíria, experimentando o quanto a Terra girava. A chuva caía de tal forma que mal se podia ver alem da calçada, mas ela ignorou totalmente isso – se expôs a chuva como se o que houvesse fosse um sol fresco de primavera. Cambaleou pela calçada e desceu pela rua rumo ao outro lado da Praça do Relógio, sentindo-se seca e tragando um cigarro molhado e apagado como se nunca tivesse sentido tanto prazer ao fumar antes. Apesar de seu estado, sua postura era mais blasé impossível.

No outro lado da Praça do Relógio, apoiou-se no poste e vomitou sutilmente, quase com dignidade, e continuou a cambalear em frente, descendo uma das ruas que morriam ali, rumo à Boulevard Éden.

Chegando a praça que marca o encontro daquela rua de nome desconhecido com a Boulevard Éden, Tereza sentou-se e vomitou mais uma vez, dessa nem um pouco sutil e distante de ser digna. Parou de vomitar e fixou os olhos no meio do prédio a sua frente, sem sentir a chuva ou o vento intenso que iam contra seu corpo. Começou a chorar desesperadamente.

Um farol iluminou Tereza, a fazendo parar de chorar, assustada. Sentiu uma grande fraqueza. Desmaiou.

Ainda chovia pela manhã, quando Tereza acordou entendendo nada. Chovia bem menos. Não se lembrava do que havia acontecido. Esfregou os olhos e percebeu que estava dentro de um carro. Vislumbrou lá fora alguém de guarda-chuva vermelho vindo, em passos calmos, em sua direção.


Gustavo A. Lacerda

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