26 de set. de 2008

O Mínimo

As derradeiras noites de insônia.
O dissipar dos dias de descanso.
O resoluto sentimento de retorno próximo.
A pouco sofrida reaproximação com a rotina.

O mínimo que se pede é um pouco de bom senso,
Nesse quase confuso momento,
Onde basta meu rompante ego de intenso.

O mínimo que se pede é um pouco de paciência,
Nessa pré-correria rotineira e esmagadora,
Onde basta meu angustiante vício de intolerante.

O mínimo que se pede é um pouco de fé,
Nessa perdição incessante de virtudes e valores,
Onde basta minha mania de esmagar tudo com o pé.

O mínimo que se pede é um pouco de verdade,
Nesse antro de pervertidos e perversores,
Onde basta minha incontrolável vaidade.

O mínimo que peço é a dissolução da minha vontade.
Mas vontade de quê?
Se fosse só uma por vez, simples seria.
Mas simples não é!

O mínimo que se pede é o máximo de descomplicação,
Nesses dias descompassados de primavera,
Que precedem as sufocadoras noites de verão.

O mínimo que desejo é o mínimo de paixão!
E que venham muitas para avassalar minha razão
E acalentar de pouco em pouco meu agridoce coração.

Tudo que se pede é o mínimo,
Para eu encarar o que está por (re)voltar.

18 de set. de 2008

Desequilíbrio Constante

Fogo do tipo que queima tudo que se aproxima.
Fogo do tipo que se alastra rapidamente.
Fogo do tipo que nem água pode apagar.
Fogo do tipo que faz arder até a alma mais fria.
Fogo do tipo que ilumina até o lado negro da lua.

Gelo do tipo que congela tudo que se aproxima.
Gelo do tipo que envolve tudo muito rapidamente.
Gelo do tipo que nem fogo pode derreter.
Gelo do tipo que faz esfriar até o coração mais caloroso.
Gelo do tipo que pode petrificar o Sol por inteiro.

Fogo.
Gelo.

Fogo suficiente para derreter o gelo dos pólos.
Fogo suficiente para causar ebulição nos oceanos.
Fogo suficiente para que a chuva seque sem tocar o chão.

Gelo suficiente para congelar toda a água do mar.
Gelo suficiente para causar uma nova era glacial.
Gelo suficiente para que as gotas da chuva se tornem lanças.

Fogo demais.
Gelo demais.

Fogo além do que se pode controlar.
Gelo além do que se pode suportar.
Conflito entre duas partes que se consomem.


14 de set. de 2008

Todo es Mentira

Gosto que tente me arrancar pedaços.
Você sente minha carne tenra,
E quando aproxima seus dentes, me esquivo.
Apenas imagina como deve ser macia minha pele.

Você, como todos, como não poderia deixar de ser, mente.
E cada mentira sua pra mim não passa de uma semente,
Que cuidadosamente planto e cultivo com as demais,
Tantas minhas e tantas de outros como você.
Todas diferentes e, ao mesmo tempo, ridiculamente idênticas.

Mentiras são verdades que dão certo da boca pra dentro
De tolos que se valorizam além da conta,
Ao acreditar na ingenuidade de um sorriso doce
E não observar os olhos que os dissecam por inteiro.

Você mente e pergunta se me importo com sua verdade.
Respondo com um sorriso e digo estar tudo bem,
Para que você se vá realizado e contente.

Gosto que se sinta por cima da carne seca.
Sua vaidade aquecida enaltece meu ego,
Assim como a lua maligna de fogo
Acelera o fluxo do sangue em minhas veias.

Você se vai com a intenção de retornar
E possuir com desejo latente
Cada centímetro do meu corpo quente.
Como eu quis que se fosse.

Certas pessoas ocupam espaço demais.

Gosto que tentem me arrancar pedaços.

Essas pessoas sentem minha carne tenra,
E, quando metem seus dentes, os perdem!
A carne é tenra, mas a pele é de aço.

E no final das contas, você mentiu
E acreditou ter feito tudo exatamente como planejou.
Mas te guiei até o ponto que eu queria.
Sinto em informar, meu caro:

_ Você foi manipulado.


13 de set. de 2008

Rosa de Prata

Atrás de uma das portas do nono andar de um dos mais decadentes edifícios de Belo Horizonte, daqueles que podem ser encontrados somente no Médio Meretrício, o Bolero de Ravel abafara o som de um crime. No chão, uma poça de sangue só fazia crescer em torno do corpo desnudo de um jovem formoso que devia ter não mais que vinte anos. No corpo ainda havia vida. O jovem agonizava – a dor era tanta que já nem sentia. Estava de bruços, com o rosto voltado para a esquerda.

Uma leve, morna e úmida brisa assoprava lá fora, e, de tempos em tempos, invadia o quarto pela janela entreaberta, quase sem ser notada. A cidade dormia. Era inicio de madrugada de quinta para sexta-feira. Uma enorme e ensangüentada faca de cozinha impunha-se diante dos olhos do moribundo – estava jogada, mas não esquecida, ao lado do corpo pálido, quase sem sangue e sem vida. Aquele que desferira os golpes contra o rapaz ainda estava presente no recinto.

Através do boxe do banheiro, um vulto. O chuveiro estava ligado – era o agressor, que ainda não se havia tornado assassino. Terminado o banho e tendo-se livrado do sangue do rapaz, que lhe sujara dos pés a cabeça, a figura sombria buscou com a mão uma das duas toalhas penduradas na parede para enxugar-se. Saiu despido do banheiro e seguiu para a sala, onde se pôs diante de sua vítima.

O rapaz tinha a pele levemente morena e um corpo escultural. Em toda a extensão das costas, tinha tatuado um anjo de asas abertas. Os cabelos eram castanho-escuros e ondulados, em um tamanho médio, quase à altura do pescoço. As pupilas estavam dilatadas, ofuscando a vivacidade verde da íris. Tinha lábios carnudos, agora pálidos. O vermelho que se mostrava vinha de dentro da boca: era sangue. Na orelha esquerda, um delicado brinco prateado em formato de rosa brilhava sob a luz do abajur.

O agressor vestira-se diante do rapaz. Os olhos, quase sem vida, não o abandonaram por sequer um segundo. Enfiou a arma do crime num saco plástico e guardou-a numa pasta.

___ Você me forçou a isso. – sussurrou o agressor, abaixando-se diante da vítima, com o cuidado de não sujar de sangue os pés ainda descalços. O Bolero de Ravel encerrava e recomeçava alguns segundos mais tarde; estava em repeat. Uma lágrima escorria-lhe pelo lado esquerdo do rosto. Levantou-se e deu alguns passos na direção do aparelho de som; sem teclar stop, ejetou o cd contendo a trilha sonora da atrocidade cometida há pouco e o guardou na mesma pasta em que guardara a arma do crime. Assentou-se na poltrona e calçou-se. Contorceu-se todo para ficar por cima do rapaz sem ter de tocá-lo ou em seu sangue. Sussurrou mais uma vez – Eu te amei, mas você me forçou a isso! Poderíamos ter sido felizes juntos, mas você teve que estragar tudo! Foi tudo culpa sua. Tudo! – e mais algumas lágrimas fugiram-lhe dos olhos. Abaixou-se um pouco mais, apoiando-se na mesa de centro para não cair, e beijou levemente o lábio inferior do moribundo, que já quase não respirava mais, que já tinha aquela respiração breve e pesada que prenuncia o fim. Retirou a pequena rosa de prata da orelha de sua vítima e sussurrou mais uma vez: “Isso eu levo novamente comigo, como recordação do que tivemos juntos, de minha grande desgraça, meu anjo.” – Beijou-lhe novamente o lábio, demorando-se alguns segundos mais dessa vez. Levantou-se, com a delicada rosa de prata fechada na mão direita, pegou a pasta sobre o sofá, desligou o abajur e saiu.

A respiração do jovem tornou-se ainda mais escassa... cessou. Uma lágrima escorreu-lhe a face. Agora aquele era um corpo sem vida. O agressor tornara-se, finalmente, assassino.

Alice

A mãe de Alice dera a luz à filha num dia comum de semana, tivera um parto tranqüilo, com as dores normais de um parto, tão tranqüilo quanto toda a gravidez. O pai, cobrador de um ônibus que partia do Aglomerado para o Hipercentro e deste para o Aglomerado, terminava uma viagem quando tivera a notícia.

A vida daquela família já era conturbada antes do nascimento de Alice, como toda vida no Aglomerado, mas é destino de todos os nascidos sobre essa terra prover a continuidade de seu sangue, dizia a avó paterna. E a criança fora recebida com muito amor e razoável festividade. Os olhos do pai sempre brilhavam ao ver beleza tão semelhante a de sua amada esposa. Quantas noites passara em claro afagando e apaziguando Alice, que costumava adormecer quase na hora dele trabalhar. Alice era amada pela mãe, que tinha considerável paciência com o ruidoso choro da criança. Alice chorava muito, mais que qualquer criança em sua idade.

Alice crescera saudável e de gênio forte. A educação que recebera mal pode ser chamada de educação. À medida que ia crescendo, sua mãe tornava-se cada vez mais agressiva e intolerante. Quando nascera o segundo filho, a situação da primogênita só piorara. O pai já não tinha mais o mesmo ânimo e carinho, e tornara-se cruel em seus tratos, reservando todo o afeto para o menino que tanto sonhara – tornara-se motorista, fora promovido. Alice era surrada praticamente todos os dias – hora pela mãe, hora pelo pai, hora pelo irmão. Não reagia de outra forma se não com gritos e xingamentos.

Alice apanhava de todas as formas imagináveis. O pai tinha o hábito de torcer seus membros com as mãos até que ela parasse de gritar e chorar. A mãe já havia utilizava meios tão agressivos ou até mais que o pai, já tendo lhe queimado com o ferro de passar roupas, açoitado com fios de aço, arrastado pelos cabelos, cortado com as unhas e tantas outras formas. O irmão caçula a provocava com ofensas e a aporrinhava com brincadeiras humilhantes, sabendo que ela jamais reagiria por medo de apanhar ainda mais dos pais.

Os anos foram se passando. Um dia, num daqueles assédios do irmão, Alice o empurrara e chutara sua cabeça até que ficasse inconsciente. Ele quase morrera naquele episodio. Em retribuição a isso, o pai lhe açoitara por quase uma hora com uma vara – Alice não derramara nenhuma lágrima.

De tanto ser castigada desnecessariamente, Alice nunca respeitava ninguém. As freqüentes torturas e humilhações às quais era exposta serviram para torná-la resistente, impiedosa e praticamente incontrolável em seus atos. As surras nunca deixavam de acontecer e o grande marco de desenvolvimento de sua personalidade psicótica foi aos treze anos, quando conhecera o belo e perigoso Cristo, braço direito do maior traficante do Aglomerado, por quem se apaixonara e a quem cativara com o mesmo sentimento.

No quarto escuro e pequeno que dividia com o irmão, Alice chorava silenciosamente, deitada na cama. Sentia-se humilhada e com dores latejantes nas pernas, braços e costas. Tinha o som das varadas nos tímpanos e as sentia na carne. Minava sangue de dois vergões, um em cada uma de suas coxas. Os xingamentos de seu pai enquanto a açoitava ainda ecoavam. A expressão de deboche do irmão e a indiferença da mãe enquanto apanhava sem poder gritar incomodavam. Ouvia o som da televisão na sala – os pais e o irmão agiam como se nada houvesse ocorrido. A vontade que tinha era de matar os três, mas antes queria que sentissem muita dor, queria vingança contra o que a submetiam, queria ver a mãe em desespero, o pai humilhado e o irmão abandonado.

Alice pegou o celular e telefonou para a policia. Sussurrou para que não a ouvissem da sala. Desligou o telefone e sorriu, em meio as lágrimas de dor. Mas apenas aquilo não a deixaria satisfeita. “Mãe!”, gritou, e sua mãe levantou-se devagar, com a cara cheia de má vontade para ver o que queria, caminhando cinco passos até a porta do quarto:

__ O que foi, menina aborrecida?! – perguntou, acendendo a luz e parando na porta com a mão esquerda na cintura e um cigarro aceso entre os dedos da direita, levando-o até a boca e dando uma preguiçosa tragada – O quê que você quer, morrinha!? – tinha uma voz fina e irritante, e utilizava de linguagem vulgar devido a pouca educação que recebera durante sua vida miserável.

__ Eu preciso te falar uma coisa que eu fiz... – Alice estava deitada de bruços, com o lado direito do rosto encostado na cama, em oposição a porta, voltando-se com olhos e voz sarcásticos, fazendo com que o coração de sua mãe gelasse. Havia tanto prazer e excitação em seu semblante, que sua mãe estremecera, deixando o cigarro cair e o corpo tombar, batendo com o braço na porta, que rebateu na parede. – Eu telefonei pra polícia e contei o que aquele animal fez comigo. – sussurrou Alice – Eles já vêm aplicar um corretivo nesse desgraçado e em você também, sua ordinária! – o sorriso não lhe saia do rosto.

Alice vira os olhos de sua mãe encherem-se de lágrimas, e deliciara-se com aquilo. A mãe olhara por algum tempo nos olhos da filha, congelada com a satisfação sarcástica que expressavam e com o sorriso maléfico entre lágrimas que tinha estampado no rosto. E sua mãe não dissera mais nenhuma palavra – apagara a luz, saíra do quarto, passara pela sala e fora para a cozinha, sentando-se a mesa, apoiando-se nos cotovelos, descabelando-se com os dedos, lançando um olhar fixo para a parede a sua frente e, num profundo e discreto soluço, começando a chorar e caindo aos prantos de cara na mesa – tão sutil que não foi ouvida da sala. “Criada com tanto carinho e faz uma coisa dessas, meu Deus!”, soluçava consigo mesma. “O que foi que eu fiz pra merecer isso, Senhor!? O que foi que esse homem que só faz trabalhar pra sustentar essa casa fez pra ter uma filha dessas? Onde eu errei, Pai?!”, se lamentava e chorava de perder o fôlego, se controlando para que ninguém a ouvisse.

A surra daquela noite não fora a mais violenta de todas, mas fora sem duvidas a mais humilhante e revoltante para Alice. O pai a agarrara pelos cabelos diante de suas amigas, na rua cheia, e a levou puxando-os com força, aos gritos: puta, vagabunda, piranha, ordinária, desgraçada e tantos outros xingamentos no gênero. O irmão estivera ao lado dos dois o tempo todo, gargalhando escandalosamente e incitando o pai a continuar. A mãe aguardava em casa e, quando entraram pelo portão, entregou uma vara nas mãos do esposo, que tinha o rosto deformado pela ira. Alice foi arremessada no chão pelo pai, e um chumaço de cabelo dançou com o vento – e ele não se detivera por sequer um segundo: ergueu a vara e começou a açoitar a filha de forma indiscriminada, sem se importar com onde acertava, gritando os mesmos xingamentos enquanto fazia isso:

__ Isso é pra você aprender a ficar se esfregando com esses pretos marginais, sua piranha! Toma, que é disso que você gosta, sua vagabunda! –Alice era açoitada pelo pai e, quando tentava desviar, ele a agarrava pelos braços ou pelos cabelos, a jogando no chão. As varadas ecoavam. Ela rastejava pra fugir e ele a puxava pelas pernas. O intervalo entre as açoitadas era tão curto que a dor era constante, como se fosse uma única e interminável – Não grita, sua ordinária! Cala essa boca ou eu te arrebento toda. – o pai disse isso estapeando duas vezes a face da filha e apertando sua boca com força, forçando sua cabeça no chão quando ela deu um grito. – Tenho certeza que na hora que ele estava mandando ver, metendo aquele pau preto aqui, você não gritou, só gemeu e gostando, pedindo mais! – disse isso dedilhando com força a vagina da filha, que deu um grito abafado pela mão pesada em sua boca – Então me pede mais, sua prostitutazinha desgraçada! Pede!

O choro de Alice era desesperador. O irmão gargalhava e debochava. A mãe interviu com um “Basta!”, e o agressor, ainda com a mão na vagina da filha, cessou. Ela pegou a filha pelo braço e a levou quase arrastada para dentro de casa. Alice foi arremessada de forma impiedosa pela mãe em sua cama e a olhou bem nos olhos cheios de lágrimas que não paravam de rolar.

__ Agora chora na cama, que é lugar quente. Eu te avisei! – disse a mãe a filha, apagando a luz e saindo. Menos de dez minutos depois, estavam assistindo televisão na sala, como se nada tivesse acontecido, enquanto Alice chorava e tremia de dor.
O que despertara a ira do pai de Alice fora um telefonema recebido por ele minutos antes de agarrá-la pelos cabelos:

__ Belo pai você é! Enquanto você trabalhava, deixando sua filhinha à vontade, nosso bandidinho se deliciava com o que ela lhe dava de bom grado. – disse uma voz feminina ao telefone.

__ Quem é? Do que está falando?! – indagou o pai de Alice, vociferando.

__ Você entendeu bem o que eu disse. O futuro senhor do tráfico anda comendo sua filha todos os dias, enquanto você pensa que ela está estudando. Não demora muito, você se torna avô do filho de um delinqüente da pior espécie! – e desligou o telefone.

Havia alguns meses que o pai de Alice descobrira seu romance com Cristo e, por diversas vezes, a punira por causa disso. Mas desde que ela disse ter parado de ter com o braço direito do senhor do tráfico, o pai relaxara com a certeza de que a filha andava estudando de maneira esforçada. Temia pelo futuro da filha. Naquele episodio, daquela noite trágica, a ira e o descontrole que culminaram na maior humilhação, até o momento, na vida de Alice foram provocados pelo desespero.

Não demorou muito, uma viatura da polícia estacionou em frente a casa dos pais de Alice. A rua estava cheia. Um policial desceu, caminhou até o portão e tocou a campainha. O coração da mãe de Alice acelerou ainda mais. O muro da casa era baixo e ficava apenas a alguns poucos metros da janela da sala onde seu pai assistia televisão, e ele se levantou e dirigiu-se até o portão, onde o policial parecia dizer o que o levara ali. Àquela altura, Alice estava assentada na cama, com os ombros meio caídos, a cabeça meio abaixada e o olhar vazio, erguido e fixado no móvel que havia no canto do quarto. O irmão de Alice estava parado e assustado na porta da sala, olhando ora para o pai com o policial ora para a mãe assentada na cozinha aos prantos.

Alice ergueu a cabeça e o corpo como um fantasma, levantando-se da cama e arrastando-se até o móvel. Abriu uma das gavetas e retirou de dentro um prendedor pontiagudo de metal de cabelo. Seu pai passou pelo caçula na porta da sala acompanhada pelo policial e caminharam até o quarto. Sua mãe engolira o choro e levantara-se da cadeira com os olhos esbugalhados.

Os dois homens entraram no quarto e fecharam a porta logo atrás. Antes que a porta fosse totalmente fechada, o irmão de Alice a vira de costas ao lado do móvel. Menos de um minuto depois, duas vozes se misturavam em gritos de desespero dentro do quarto. A mãe de Alice, reconhecendo a voz da filha e percebendo que a outra era do policial, correu até a porta fechada e começou a esmurrá-la e gritar para que a abrissem.

Um segundo policial, que aguardava dentro da viatura, ouvindo os gritos, saiu às pressas do carro e, quando passou pelo portão, ouviu cinco tiros. Entrou pela porta da sala. Um breve silêncio e mais um disparo. A mãe e o irmão de Alice afastaram-se da porta e o policial alto e gordo começou a jogar o corpo contra esta, a fim de arrombá-la. Bateu uma, duas, três, quatro, cinco vezes, urrando de forma reprimida cada vez que seu corpo ia de encontro a porta. Na quinta batida a porta se abriu, indo violentamente de encontro a parede.

A porta aberta revelou o pai de Alice caído, encostado na parede, com a roupa banhada em sangue, os olhos esbugalhados e a respiração ofegante. Ao lado do móvel, o corpo do policial que entrara primeiro, com uma crescente poça de sangue em torno da cabeça e um objeto fincado no olho esquerdo. Em frente a janela, a esquerda da porta, estava Alice apontando uma arma para a cabeça do pai, a dois metros de distancia dele e mais dois metros de distancia da porta – tinha um sorriso aberto e olhos vazios. Sua mãe, seu irmão e o policial que arrombara a porta estavam perplexos com o cenário.

Quando a porta do quarto se fechou diante dos olhos do irmão de Alice, o primeiro policial aproximou-se dela, levou a mão a seu ombro e, antes que pudesse dizer qualquer palavra, foi ferozmente atacado com um prendedor de cabelo diretamente em seu olho direito – tanto o policial quanto Alice começaram a gritar, o primeiro de dor e a segunda enquanto o atacava com vários golpes na face, dos quais ele não conseguia se defender. O policial caiu e Alice se jogou em cima dele, fincando o prendedor em seu olho esquerdo, sacando rapidamente a arma de seu cinto e disparando cinco tiros em sua cabeça, o matando imediatamente. O pai de Alice não fora capaz de esboçar qualquer reação, e logo ela se voltou para ele, dando o sexto disparo e o atingindo no ombro.

O policial que arrombara a porta deu um passo a frente, direcionado lentamente a mão a arma em seu cinto. Mais um disparo e o policial caiu de joelhos e logo de rosto no chão. Alice continuou com a arma apontada para o pai. Sua mãe e seu irmão haviam se voltado para trás, de onde viera aquele novo disparo: Cristo estava parado, com uma arma erguida.
Cristo passou pela mãe e pelo irmão de Alice e caminhou em direção a ela, abaixando sua mão e retirando a arma que ela apontava para o pai. A abraçou forte e ela explodiu num choro de dor imensa.

__ Seu desgraçado! V... – o pai de Alice tentou dizer algo, mas antes que concluísse a terceira palavra, Cristo disparou um tiro contra seu peito, fazendo-o se calar e cessar a respiração por alguns segundos, retomando-a de maneira convulsiva, inspirando e expirando rapidamente, produzindo bolhas de sangue na boca e escorrendo como geléia até ficar totalmente deitado, com a cabeça encostada na parede.

Alice se soltou dos braços de Cristo, correu em direção ao pai, agora estirado no chão, segurou entre as duas mãos com ódio sua cabeça e começou a batê-la com força no chão. Sua mãe caiu de joelhos no chão e assistiu imóvel. Seu irmão tampou os olhos com as mãos e encolheu-se num canto da cozinha. Bateu diversas vezes a cabeça de seu pai contra o chão, tanto, tanto, tanto, que os miolos começaram a sujar em torno. Mais uma vez, Cristo precisou para-la.

Cristo ergueu Alice e a levou consigo. Saíram pelo portão, sendo vistos por uma infinidade de pessoas em frente à casa, entraram num carro que os aguardava na porta e partiram.

A mãe de Alice enlouquecera e seu irmão ficara em estado de choque por muito tempo, sendo entregue para adoção.

Naquela mesma noite, o Senhor do Tráfico foi assassinado e Cristo assumiu o controle do Crisálido.

Alice nunca mais foi vista.

Era véspera de natal.

11 de set. de 2008

Sobre as Decepções

Tereza entrou pela porta do apartamento e encontrou a sala quase vazia – já espera por isso. Havia lixo e sujeira pelo chão. Virou-se para a direita e entrou na cozinha; acendeu a luz e encontrou mais bagunça – esperava por bem mais. Caminhou até o quarto, acendeu a luz e mais sujeira, bagunça e uns troços pelo chão.

__ Que bagunça! – suspirou.

Largou a bolsa sobre a cama e começou a arrumar. Correu até a cozinha e colocou água pra ferver. Voltou para o quarto e continuou a arrumação. Sentiu falta de algumas peças de roupa e de alguns objetos seus – “Puto!”, esbravejou. Oi até a cozinha novamente e despejou o conteúdo de um pacote na água fervente; mexeu por alguns minutos e estava pronto o canjão. Sentou-se na sala e comeu rapidamente. Voltou para a cozinha e notou que restara apenas uma xícara das suas e que a garrafa de café havia sumido – “Afe! Mas até isso?!”, perguntou para as paredes.

Continuou a arrumação. Terminou no quarto e foi pra sala. Arrumou a sala. Terminou tudo. Voltou para o quarto, colocou “Sia” no som, assentou a janela, acendeu um cigarro – fumava cigarros pretos de cravo – e tragou fundo.

__ Toda decepção é sempre previsível, mas o limite, às vezes, é invisível. – falou com a brisa morna que entrava pela janela – Há quem tenha vocação para ser decepcionante. – sorriu consigo e com a cidade adormecendo sob seus olhos.

A Cidade estava sonolenta.

__ Prefiro me decepcionar! – riu mais um pouco e tragou o cigarro – Sinal de que acreditei até o fim, e que vivi o que queria viver, e que fui o que precisava ser. O bom é que passou, como tudo sempre passa!

Tereza não se importava com a sujeira deixada e com seus bens levados. Preferia assim. A sujeira pode ser limpa – havia uma vassoura. Os bens podiam ser repostos – havia dinheiro.

__ Semana que vem, vou comprar coisinhas novas e vou decorar meu apartamento! Vai ficar lindinho, bem do jeito que eu sempre quis... daí, vou chamar alguns amigos para um café, mas amigos de verdade apenas. Gosto assim.

O cigarro acabou. Tirou a roupa. Apagou a luz. Se deitou sem banho e sem roupa. Sorriu novamente e, antes de adormecer, cochichou com o edredom:

__ Gostaria de um dia não me decepcionar. Mas se para viver intensamente tiver sempre que ser assim, então me decepcionarei muitas vezes na minha vida! Mas nunca, nunca, nunca.... Nunca! Nunca deixarei de viver cada momento importante, cada paixão, cada café e cada cigarro intensamente.

A janela ficara aberta. Tereza dormira feliz, por que o passado havia passado, e o presente lhe sorria... havia gente nova.

8 de set. de 2008

Trombamento

Um pouco de afeto
Para um corpo inquieto.

Uma alma sem teto,
Que voa pelo mundo,
Despregada da carne.

A busca pelo calor
(No descolamento do amor),
Que queime sem provocar dor,
Que core sem ser constrangedor.

O trombamento de corpos aflitos.

O ideal trombamento de corpos
Que se atracam e que quase se agridem
Sem sequer se tocar,
Apenas com a aproximação,
Com o distúrbio causado no coração.

Aspiração insensata.
Inspiração ingrata.
Demonstração inexata.

Um maldito não trombamento de corpos,
Que não revelam nada,
Que revelam tudo,
Que não sabem se expressar,
Que gritam e não podem ser ouvidos.

Por um trombamento de corpos que revele,
Que estenda, que estique uma simples vontade,
Que torne dúvida e desejo em verdade,
Que salve, transforme e transcenda,
Que o teto de carne e de fogo para a alma acenda.

Por uma imantação posterior ao trombamento,
Que impossibilite o descolamento
Do arrebatador e agora indizível sentimento,
Sem arrependimento, para que não haja sofrimento.

Gustavo Füsca.