29 de jun. de 2007

Enxurrada

A enxurrada corria as ruas confusas do Centro. Os semáforos piscavam em verde, alaranjado e vermelho, deixando passar ocasionalmente um carro em cautelosa velocidade. A Praça do Relógio, normalmente nunca em absoluto adormecida, estava quase vazia – apenas dois táxis na esquina. Nenhum boteco aberto em parte alguma da Cidade Horizontal. Nenhuma puta no Médio Meretrício. Nenhum garoto de programa nas imediações da Boulevard Éden. Nenhum travesti fazendo ponto na Via Expressa. Caía a maior chuva dos últimos trinta anos e só isso, e somente ela tocava as ruas naquela noite. Era madrugada de quinta para sexta-feira.

Perdida entre alguns poucos perdidos desconhecidos da noite horizontal, numa mesa de boteco do andar térreo do Edifício Atíria, ela virava sua quinta dose de pinga. A sombra em torno dos olhos inchados de tanto chorar estava borrada. O batom ficara parte no copo e fora parte dissolvido pelo álcool. Os cabelos já estavam ensebados devido ao sestro que ela tinha de passar os dedos incontrolavelmente, em especial quando estava nervosa ou embriagada – e estava os dois. A bolsa, que a principio estava colocada na cadeira ao lado, encontrava-se agora jogada sobre a mesa, logo ao lado de um cinzeiro lotado, com um cigarro aceso depositado no suporte. Bateu o copo com força sobre a mesa, chamou o homem do boteco, que não era bem um garçom, e lhe entregou uma quantidade de dinheiro embolado e amassado que pagaria dez vezes o que havia consumido – o homem, bobo que não era, nada disse. Ela juntou seus troços, pendurou a bolsa no ombro, levantou-se ameaçando desmoronar e levou o cigarro aos lábios, saiu cambaleante.

Cabelos pretos e lisos, a altura dos ombros. Olhos intensamente verdes. Nariz fino, com narinas levemente abertas. Lábios vermelhos e em forma de coração, com volume razoável, desenhados numa boca discreta e recheada de dentes brancos e alinhados. A pele era branca como a neve e lisa como a seda. Seus traços eram de uma delicadeza quase infantil. O nome era Tereza e tinha seus vinte e cinco anos.

Tereza cambaleou até a entrada do Atíria, experimentando o quanto a Terra girava. A chuva caía de tal forma que mal se podia ver alem da calçada, mas ela ignorou totalmente isso – se expôs a chuva como se o que houvesse fosse um sol fresco de primavera. Cambaleou pela calçada e desceu pela rua rumo ao outro lado da Praça do Relógio, sentindo-se seca e tragando um cigarro molhado e apagado como se nunca tivesse sentido tanto prazer ao fumar antes. Apesar de seu estado, sua postura era mais blasé impossível.

No outro lado da Praça do Relógio, apoiou-se no poste e vomitou sutilmente, quase com dignidade, e continuou a cambalear em frente, descendo uma das ruas que morriam ali, rumo à Boulevard Éden.

Chegando a praça que marca o encontro daquela rua de nome desconhecido com a Boulevard Éden, Tereza sentou-se e vomitou mais uma vez, dessa nem um pouco sutil e distante de ser digna. Parou de vomitar e fixou os olhos no meio do prédio a sua frente, sem sentir a chuva ou o vento intenso que iam contra seu corpo. Começou a chorar desesperadamente.

Um farol iluminou Tereza, a fazendo parar de chorar, assustada. Sentiu uma grande fraqueza. Desmaiou.

Ainda chovia pela manhã, quando Tereza acordou entendendo nada. Chovia bem menos. Não se lembrava do que havia acontecido. Esfregou os olhos e percebeu que estava dentro de um carro. Vislumbrou lá fora alguém de guarda-chuva vermelho vindo, em passos calmos, em sua direção.


Gustavo A. Lacerda

17 de jun. de 2007

O Outro Lado da Rua (Aquele que nunca chegou...)

Íris vermelhas, lábios cor de sangue, sorriso branco como a neve. Semblante plácido, postura comedida, ar recatado. Atitudes respeitosas... mas isso é o que você vê e não o que de fato é.

Meio que se esconde. Ajeita os cabelos sobre os olhos. Um sorriso leve de satisfação com seus pensamentos – que ninguém vê. Acende um cigarro e se distraí: o mundo é só dela. Sentada ali, sozinha, como uma esfinge, misteriosa e convidativa. “Decifra-me”.

A chamam Hilda, mas há quem diga ser outro seu nome. De seus traços e trejeitos demasiados femininos, há também quem desconfie. Surgiu! Simplesmente surgiu, como que sem algo que precedesse esse presente que intriga quem a observa. Inspira uma idéia de futuro duvidoso. Inspira certa aflição... desejo.

O olhar desconcertante. Impossível manter contato visual por mais de três segundos. Rostos ruborizados por onde ela passa. Cansada daquele balcão de bar, se levanta e dá alguns passos em direção a saída. Uma mulher elegante. Movimentos firmes, fria e distante. Antes que alcançasse a porta, um velho quadro chama sua atenção a meia luz do ambiente enevoado.

Não era algo emoldurado, era um quadro vivo. Pessoas sentadas, umas sorrindo acompanhadas e outras vazias e solitárias. Em seus olhos, para quem naquele momento a olhasse, vestígios de passado. Virou-se, saiu e atravessou a rua distraída, entorpecida, sem olhar. Não viu mais nada. E a cor de sangue de seus lábios tomara o asfalto.


Gustavo Lacerda e Felipe Lucas
*** Café Kahlua – 12/05/2006

10 de jun. de 2007

Isabela

Um interminável mar de cachos negros
Sobrepondo a força de venenosos lábios rubros.
A finita luz de olhos íris cor de mel,
Ofuscada pela altivez de um nariz de arranha-céu.

A lenda viva de um corpo esplendido.
O marasmo sórdido desta carcaça mórbida (sob)
A metamorfose orgástica de seu corpo coberto sendo descoberto.

Desejo, volúpia e todo seu gracejo, traquejo,
Em seu modo sutilmente sexual de se mover,
Em seus sorrisos delicadamente dedicados a sedução,
Em suas viradas metódicas e atenciosamente indiferentes.

Cada fio de seus cabelos tirados, sem se mover, do lugar
Pela baforada morna imprópria para o verão,
Mas que caminha solta nas vielas por esta estação,
Não deixando de causar comedida e conformada indignação
No que diz respeito àquelas coisas do coração.

Aguardo sentado o momento de seu toque,
O instante em que ficarei em estado choque
Com seus lábios em meio a meus cabelos num beijo,
Enquanto deliro entre seus furtivos seios.

Vai além do que é um mero corpo,
Diferente deste velho e enrugado estorvo,
Que aguarda inquieto o improvável retorno
Da juventude levada entre as garras de um corvo.

A atuação do tempo na pele e na carne é voraz,
Assim como essa insaciável fomenta por ti é atroz
E puramente ilusória a proximidade entre nós.

Me afogo entre seus cabelos negros,
Me enveneno na miragem sangrenta de seus lábios,
Me cego ao mirar, mesmo de longe, seus olhos

E me perco nas alturas, sentindo bem próximo de mim o céu.


Gustavo A. Lacerda

Rebite

Quero, posso e vou além.
O inferno não é o meu limite.
Sou capaz de fazer o mal e corromper o bem,
Com intuito de me prender a ti como um rebite.

Ameaço os transeuntes,
Persigo seus mais próximos entes,
Cuspo em seus amantes,
Desfiguro rostos para ti apaixonantes.

Sou bem capaz de me ajoelhar,
Mas prefiro aos que surgirem arruinar,
E a faço de todos se afastar.
E só faço pra te ver chorar,
Por que depois serei eu a te consolar.

Rezo aos santos da missa negra,
Apego-me aos anjos caídos,
Choro lágrimas secas,
Grito em silêncio.

Você me vê e você me sente.
Meu cheiro é agradável e excitante,
Dá vontade de provar... e você prova...
Meu gosto é viciante.

Te tenho, te amo, te como!
Depois de conseguir, perde a graça.
Você, à minha coleção, agora somo.
Sem choros! Até eu caí nessa farsa.

Assim como me apaixonei, desapaixono!
Não quero e nem serei seu dono!
Agora vá, ou te abandono!

Saia por cima!
Quero que saia por cima!
Me sentirei menos pior.

É... me apaixonei!
Acho que até te amei!
Mas já desencantei!
E até me desapontei.

Quis, pude e quase fui além!
Porém, o inferno foi o seu limite.
Porém, era enorme a fraqueza do bem.
E agora, sem essa de rebite!

Sou alma orgulhosa.
Minha mente é meticulosa.
E tu... que experiência desastrosa!

Você partiu meu coração!
Logo você, que me era uma deliciosa inspiração.
Mas já vi que não tem mesmo vocação,
Que já é só mais uma em minha coleção.
Por hora... uma decepção!


Gustavo A. Lacerda

Precipício

Ouvi dizer que o Amor é magnífico,
Que seus frutos são únicos,
Que sua magia é perfeita,
Que sua harmonia é plena.

Não sei se lá fora há lua,
Só sei que sol ainda não há.
Daqui, não percebo som algum na rua.
Espero que a noite nunca se vá.

Minha vida é profundamente obscura,
Por isso quero que a noite seja eterna,
Para que meu mal não tenha cura.
Sou um afogado, e o Sol seria uma lanterna.

Não quero me salvar!
Deixe-me morrer!
Quero ser levado pelo mar!
Só depois do meu fim irá amanhecer.

Sei exatamente de onde vem minha dor,
E a conservo como uma delicada flor,
Armado contra tudo que vier a se impor.
Ela é filha do Amor!

Amor... Maldito Amor!
Sentimento egoísta e dominador,
Que causa frio e ao mesmo tempo calor!
Cruel, doce, atroz, destruidor...

Senti que o Amor é algo muito específico,
Que pode gerar frutos trágicos,
Que sua magia é rara,
Que sua plenitude pode ser grotesca.

O Amor é o inicio da queda,
As rochas o meio do caminho,
O fundo do oceano o fim.

O precipício é onde a teia se desenrola.
O choque são as mágoas e fraturas expostas.
Se perder nas águas é o depois...
E aí, só restam as cicatrizes...

Amor... Amei e novamente amo.
Esse sentimento me torna insano.
Me sinto puramente humano.
E fica a dúvida se é só mais um engano...

Gustavo A. Lacerda

Por Um Triz

Minha mente é meio louca.
Noção? Tenho pouca.

Vivo no mundo do pó,
Onde sempre caminho só.
Algumas vezes sou de me dar dó,
Tanto que na garganta sinto um nó.

A minha volta vejo dragões!
Perco-me em confusões!
Viajo em ilusões!

Prazer é o meu nome.
Pode clamar!
Existe um mal que me consome,
Mas não me espere ouvir chorar!

Tome meu corpo!
Tome minha alma!
Não precisa muito esforço,
Seu sexo já me acalma.

Sou desesperado,
Jogue-me e tenha-me de lado!

Sinto ânsia e desejo.
Pulso violentamente!
Quero seu arquejo.
Possua-me com calor ardente!

Não me deixe úmido,
Quero ficar seco,
Quero ficar pálido,
Por que é assim que me perco.

Dê-me o outro remédio;
Aquele que não é seu sexo.
Quero diminuir ainda mais o tédio,
Quero acabar de vez com meu reflexo.

Continue! Não pare!
Seja brevemente demorado!
Faça com que eu não sare!
Não descanse antes de me ter desmoronado!

Grite!
Faça forte!
Não se importe!
Leve-me à morte!

Sinta essa harmonia delirante,
Esse pré-gozo cruscificante,
Essa tremedeira desedificante,
Essa vibração cada vez mais excitante!

Grite com essa voz aterradora!
Saia e entre!
A volúpia é sobranceiradora...

Urre ao sentir o ardor,
Gema ao expelir o calor,
Goze explodindo em dor!

Destroce-me!
Mas faça-me ainda mais feliz.
Só quero me perder por mais um triz.


Gustavo A. Lacerda

Pobre Coitado

Como é a sensação de me odiar?
Como é não poder me encarar?
Imagino que seja difícil me evitar.
Sei que te dói nosso encontro não poder adiar.
Deve ser duro tentar e não me alcançar!

Estou em todas as esquinas,
Freqüento todas as festas,
Brilho em todas as baladas...
Me esquivo de todas as suas flechas e balas!

Pareço doce, mas sou amargo!
Sou ambicioso e tomei o que seria seu cargo;
Pra comemorar, apenas acendi um cigarro.
Você, no ponto, ressentido, me vê passar de carro.

Você chora e eu só posso rir.
Tente sorrir, tente brilhar, tente me ser!
Talvez veja uma porta se abrir,
Mesmo que seja pra na sua cara bater!

Pobre coitado!
Nascido e crescido num aglomerado.
Vai envelhecer e morrer encurralado.
Vai apodrecer sem ter brilhado.

Rale e sofra com seu medíocre trabalho!
Chore ao ver seu quase inexistente salário!
Sinta o gosto da terra... seu lugar é no barbalho!
Desapareça! Tranque-se no armário!

Faça melhor: poupe-me!
Poupe-se! Não sofra!
Faça o seguinte:
- Apenas morra!


Gustavo Lacerda

Entre o Céu e o Inferno

Quero que o mundo se exploda!
Que o céu seja inundado por porra,
E que quem não for para o inferno se foda,
Assim como que quem vive sem Vida morra!

Não estou nem aí pra essa merda de sentimentalismo!
Só me prendo se for solto e tiver uma dose de realismo!
Só me entrego a quem sabe usar o seco romantismo!
Tenho nojo de quem acredita e se apóia no tal homossexualismo!

É doença essa coisa de “ismo”!

Só aceito se for sentimentalidade.
Só me prendo preso se for realidade.
Com gosto me entrego se for à doce romanticidade.
E com orgulho assumo se chamarem de homossexualidade!

É mais digerível quando termina em “idade”.
No “ismo”, tudo não passa de debilidade.

Mundo cruel o caralho!
Isso quem diz é gente fraca que acha que tudo dá trabalho!
Gente que não merece nada além do retalho!
Vermes que devem ter seu lugar junto ao barbalho!

O mundo é uma droga!
Mas é uma droga que podemos cheirar,
Uma droga que nos pode fazer viajar,
E, deliciosamente, delirar!

O mundo é uma droga!
Mas é uma droga que podemos acender,
Uma droga que podemos com a inspiração absorver
E, de forma incontrolavelmente controlável, enlouquecer!

O mundo é uma delicia!
Melhor que lamber a Patrícia,
Que comer o Fabrício,
Que dar para o Maurício, e foder com todos juntos sem artifícios!


Nesse mundo, não há nada como sexo!
Essa coisa recíproca, que me deixa perplexo,
A ponto de resmungar e dizer dizeres sem nexo,
Que me faz levantar de onde tiver sido sem nenhum reflexo.

O sexo é coisa do mundo,
Ou talvez o mundo pertença ao sexo...
E nisso não há nada de imundo!
Deixem pensar isso os que têm algum complexo.

Eu trepo,
Eu ferro,
Eu berro,
Eu gozo!

Quem quer ir para o paraíso?
Que graça tem isso?

Onde estará o álcool e o fogo?
Como ficarão os tecos e o jogo?
Como celebraremos com a música do demônio?
Seria um saco dançar com o podre Santo Antônio!

Vou para o céu se for open bar!
E adorarei se puder me jogar ao mar,
Mas contando que sem roupa possa nadar,
E, ao pôr-do-sol, na areia, escandalosamente trepar!

O inferno é melhor!
Terei a eternidade para me jogar com suor,
E nunca me cansarei de transar por findáveis noites de amor,
Podendo abandonar sem deixar nenhum rancor,
Mas causar, mesmo que temporariamente, muita dor!


Gustavo Lacerda

Um Silêncio Temporariamente Ininterrupto

E quando o tempo passa
E você não se toca?
E quando as águas correm
E você não se molha?
E quando você não permite
Que nada ultrapasse a superfície?

De repente, uma frase que vem de fora,
Entra suave e me faz toda a diferença.
De repente, cai a ficha de que o mais esperto
Está longe de ser eu, e que eu o me imaginava.

O passado vem à tona e a certeza
De que um movimento a menos
Teria feito toda a diferença
Faz surgir voraz o arrependimento
E a vontade insensata de voltar o tempo.

E cada ação gerou uma cadeia de reações,
Como é natural e de se esperar.
E para cada reação, de mim partiu uma agressão.
E como resposta a cada uma destas:
Lágrimas, desencanto e afastamento.
E de mim, como réplica, cegueira e surdez.
Solidão...

Agora, pela primeira vez,
Me amarga o arrependimento,
Que bate de frente com a convicção
De que tudo deve ser dito e feito.
E a dor se revela imensurável.

Depois de toda a insensatez dita e feita,
O que resta é me calar e me congelar
Ou abrir os olhos, ouvidos e alma,
Me permitindo ao que vem de fora.

O tempo não volta, o tempo não pára,
O tempo não chora, o tempo sequer olha.
E uma voz no vento resiste na noite,
Fazendo com que tudo pare.

Por você, por mim, por nós,
O plausível agora é que eu me entregue
A um silêncio temporariamente ininterrupto,
Até que a dor passe e eu tenha aprendido
Como bate um coração partido
E que seja relembrado o que foi esquecido.

Gustavo Lacerda

Tormenta

No meu mundo, não existe medo.
No meu mundo, não existe coragem.
No meu tempo, já não é mais cedo.
No meu tempo, ainda não é tarde.

Para meus ideais, nada é impossível.
Segundo minhas crenças, nada é improvável.
Minhas vontades são todas alcançáveis.
Pra mim, tudo é tocável.

Não me peça calma,
O tempo passa rápido demais,
E é isso que atormenta minha alma:
_ A probabilidade de não te ter mais.
A possibilidade de não ser mais.

Quero correr e sumir.
Quero ficar e dormir.
Quero tudo que surgir.

Tormenta...

Gustavo Lacerda

Nada em Troca

Digo o que penso e espero ouvir nada em troca.
Sua resposta não é o que me toca,
Esse tipo de obrigação somente me sufoca.

Se for ofendido com inverdades insensatas,
Dê-se o direito a um tapa como agradecimento.
Se for agredido com palavras toscas,
Esteja à vontade para exigir o silêncio.

Quando as palavras expressarem afeto
E acariciarem seu ego,
Apenas dê um beijo e esqueça todo o resto.
E se não condizer o beijo, então sorria.

Nada em troca é o que peço.
Nada além de seus ouvidos.
Nada além de sua atenção.
Nada, além disso, que já me é o bastante.

Neste momento, você me é alguém específico,
Mas em breve será mais alguém que se foi
E chegará o tempo em que terei esquecido seu tempo.

Neste instante, o que digo mexe contigo,
Mas em breve terão sido apenas palavras que se foram,
E haverá o tempo em que as perderá no tempo,
E o que restará será apenas o esquecimento.

O que conta no fim das contas são os sorrisos.
O que fica por um tempo são os beijos expressivos
E os abraços calorosos.

As palavras em retribuição se apagam.
Ecoam somente durante o Sol poente,
E nunca existiram ao nascer do Sol seguinte.


Gustavo Lacerda

Corre, Dança

Corre, dança
Se move como o vento
Se move sem ser visto

Corre, dança
Na velocidade do som
Na velocidade da luz

Corre, dança
Gira deixando suas faíscas no ar
Gira deixando seu cheiro no ar

Corre, dança
Corre por todo o lugar
Dança sem sair do lugar



Gustavo Lacerda

A Vista

Reza a lenda que, através de sua parede invisível,
Um ser místico, de coração denso e imenso,
Observava a sombra tensa d’uma luz plena
Sobre a metrópole escandalosamente silenciosa.

Ao longe, o céu era uma constante flamejante,
E acinzentadas as nuvens quando se aproximavam.
A metrópole, estendendo-se obscura e infinitamente,
Partia bem de baixo de seus olhos puros e incisivos.

Quem caminhasse pelas ruas e procurasse
Tocar os olhos sempre abertos do observador,
Mesmo que nunca se cansasse,
Jamais encontraria algo diferente da dor.

Conta-se à boca pequena que somente ele escolhe
A quem, no momento que julgar propício,
Com seus braços delicados, porém fortes, acolhe.

A vista, na realidade, inexistia quando não se era Ele,
Ou quando não fosse concedida pela vontade dele.
A vista era proveniente daqueles olhos negros
De imensurável profundidade,
E não da janela que só havia do lado de dentro.

Reza a lenda que, através de sua parede invisível,
Que só existia do lado de dentro,
Aquele ser místico escolheria alguém que pudesse,
Assim como Ele, tocar todas as almas com os olhos.

E passo as noites em claro,
Sonhando acordado e pedindo que a lenda seja real
E, se houver o escolhido, que este seja eu.

E sonho que Ele permita que eu prossiga além da superfície
E que não somente meus olhos lambam a tal vista,
Mas que também meus pés toquem as ruas da metrópole,
E minha pele seja aquecida pela luz do constante Sol Poente,
E que finalmente chova toda a chuva que há para chover.

Quando termina o abstrato e amanhece um novo dia,
Me levanto e caminho pelas ruas concretas do cotidiano,
Aguardando, ouvindo a música que acredito ser a sua,
Nosso encontro e seu abraço acolhedor.



Gustavo Lacerda

... ão

Surreal e desconexo dos acontecimentos.
Meio estranho e quase desconhecido,
Ele surge assim em meus pensamentos
Com o olhar distante no céu colorido.

Sorriso e jeito acanhados.
Mas assim é como penso que seja.
Dedos, línguas e corpos entrelaçados.
Inexplicável, mas é o que minha mente deseja.

Sensível, profundo e idealizável.
Complexo, simples e tocável.
Apaixonante, flamejante, decifrável.
Se é que existe: poetizável!

Abstrato como o ar que preenche os pulmões.
Ardente como o fogo que queima razões.
Concreto como lágrimas de felicidade.
Suave com o mais alto grau de intensidade.

Simples e comum como pão.
Raro e brevemente eterno.
Produz marcas na nuca e no coração.
Depois dele e sem ele, vira solidão!

E o que digo dele

É apenas que rima com “ão”.


Gustavo Lacerda

Das Minhas Verdades

Das minhas verdades, existem palavras.
Das minhas palavras, existem inverdades.
Das minhas verdades, nem tudo é mentira.
Das minhas verdades, o que mais há é verdade.

Dos meus olhos pra fora, há o mundo,
E na realidade gutural deste,
Aquilo que me apraz,
E as coisas que me trazem profunda paz.

Das minhas coisas, das quais muitas são verdadeiras verdades,
Há aquelas que conto, outras que contaram;
Há aquelas que esqueço, e outras que encantaram;
E algumas que ouvi vozes cantarem.

Das suas verdades, algumas acredito.
De seus olhos surgem palavras de silêncio,
Surgem palavras de sentimento,
Firmes e fortes feito cimento.
E disso não duvido, e até acredito.

Das minhas palavras, seu nome é verdade.
Das minhas verdades, a maior é o silêncio.
Das verdades que eu conto, não sei.

Entre a liberdade de ser ou estar.
Entre consumir ou ceder.
Entre negar ou se permitir.
Ficar ou partir?

Meu caos básico de todo dia,
Meu sorriso ácido de quem não queria,
Minha doce personalidade arredia
Convertida na mais árida poesia.

Os olhares e desejos de cada um,
Das voltagens e ausência de nenhum,
De mares distantes para lugar algum.
É esse o caminho: o inverso desses versos.

A verdade e tudo mais é relativa.
Relativa a convicção de quem está.
Toda verdade é solidamente oca,
E as convicções... absolutas.

Das verdades que eu conto, não lembro.
Das verdades que sei, na verdade não sei.
Das minhas verdades, tiram-se uma ou três.

Eu não minto, apenas finjo.
Das minhas omissões, sobram verdades
Que doem (em mim, em ti) quando grito,
Que rasgam suas roupas quando conto.

Das minhas verdades, você eu omito,
E a mim... negligencio.
Das minhas verdades, em qual devo crer?
Naquela que omito?

Das suas verdades, em qual não acreditar?
Naquela que não omite?
Das nossas verdades, somente nossos ouvidos sabem o que é real.
Do que é nosso, quase tudo é verdade.

Na realidade das minhas mais profundas verdades
Você não passa de mais um ou mais uma, que vai e volta e vai.
E eu sou a única firme e inabalável verdade dessa trama.



Gustavo Lacerda

6 de jun. de 2007

A face de um anjo caído

Sou uma farsa criada para esconder a face de um anjo caído.
Minhas asas foram arrancadas,
O brilho azul de meus olhos apagado
E meu coração humanizado.
Sou isso!

Caminho atento para não ser seguido.
Me desespero se me vejo ou sinto observado.
Me disfarço para não ser reconhecido.
Corro para não ser alcançado.

Tudo não passa de uma insensata perseguição.
Eu, pra você, sou uma intocável ilusão;
Você, pra mim, uma incontrolável obsessão.

Tenho um árduo caminho a traçar.
Para chegar ao fim, terei de lutar,
E alguns sentimentos esmagar.

O meu destino é o que devo encontrar,
Mesmo que para isso tenha que o oceano cruzar
E, no percurso, muitos homens matar.

Temo a vida, temo a você e temo a mim!
Não entendo por que tudo é tão assim!
Não entendo por que tenho que ir até o fim!

Me criei e sou uma farsa!
Uma farsa criada para esconder,
Uma farsa criada para me proteger,
Uma farsa criada para apenas você ler,
Mesmo que sem nada compreender!

Me escrevi para ser um anjo.
Posso ser visto, mas não observado.
Posso ser observado, mas não tocado.
Posso ser tocado e desejado, mas não sentido.
Sou um anjo caído!

Dei vida morta a meu coração,
E ele bate forte, apesar de inaudível.
Quando percebido, impede sua ação,
E é aí que tudo fica compreensível.

Sou um anjo sem brilho e sem asas,
E tenho um coração desedificante.
Agora sou humano,
Posso e lhe serei surpreendente!
Estou, mas não sou deste plano.

Só que agora temo...
Temo, pois agora sinto!
Temo, por isso minto!
Temo, por isso fujo!

Sou uma farsa criada para somente esconder.
Tive a face de um anjo e um peito vazio;
Agora, sinto correr em mim um rio.
E, no inverno, conhecerei o impiedoso frio!

Sou humano: alcançável, tocável e sensível.
O medo de me ferir é perceptível.
A capacidade de me matar, temo lhe ser aprazível.

Minha mascara é facilmente quebrável,
Minha farsa é facilmente destrutível,
Minha trama é facilmente desvendável,
Minha presença, facilmente substituível!

Nada mais fará sentido,
Pois meu mistério está para ser partido:
-Eu sou um anjo caído!

Gustavo Lacerda