9 de jan. de 2013

Surf Sentimental

Empurrando um carrinho vazio pelo supermercado,
Vasculhando as gondolas em busca de sei lá o que,
Em busca de um pouco daquilo que não se compra,
Pelo menos não em supermercados do centro.

Silenciosamente analisando comportamentos contemporâneos,
Inevitavelmente lembro-me dos trombamentos
Sobre os quais divaguei de maneira torta anos atrás,
E percebo que, talvez, tenha desenvolvido um senso mais apurado
Ou, ainda, talvez, tenha me tornado menos descrente e incoerente.

Ficava confuso e pesaroso com a falta de decoro dos surfistas sentimentais,
Que ora estavam apaixonados ora enjoados,
Tudo num emaranhado de declarações não verbais,
De introduções calorosas entrelaçadas a declinações inexpressivas,
Covardemente ensaiadas às sombras da própria consciência,
Sob o palco do ilusório descompromisso evidenciado.

Hoje não esboço os mesmos sentimentos, apenas me movimento
No sentido e na medida do esclarecimento e da ponderação,
Ciente de que tal falta de decoro trata-se de uma questão psicológica crônica.

Na desimportancia que nos dão, reside o valor que não nos temos.
Por meio do valor que estampamos,
Nos sorrisos verdadeiros e atitudes autênticas,
É evidenciada e reconhecida nossa importância.

O que antes era algo não sequencial, que beirava o imprevisível,
Agora tem uma sequência quase lógica, absolutamente previsível,
Numa ordem de conformidade tão bege, que me entedia.

Emoções em ondas que vêm e vão à velocidade do vento
E que só nos permitem fortes sentimentos a sua superfície.
Hoje tenho meus estados sentimentais agudos e focados,
Mas você não vai me entender, pois é contemporâneo,
Enquanto o descolamento do tempo padrão me fez moderno.

Gustavo Lacerda

8 de jan. de 2013

Fome


Era aclamada por sua beleza, inteligência e singularidade,
Mas se guardava como Dorian Gray a seu retrato,
Por debaixo de um pano, atrás de uma porta,
Protegida por uma intransponível e secular grade de aço;
Rejuvenescida por um pacto com o próprio diabo,
Que a protegia da maturidade estabelecida nas relações,
Nas entregas, nas perdas, nas paixões, nos amores.

Sua depressão era máscara perfeita para a conformidade,
A justificativa para sua falta de posicionamento imediato.

Tinha no sorriso a deformidade de sua tristeza,
Uma anomalia depressiva que sobrepunha sua falta de coragem
Em assumir o que de fato sentia e abraçar o que lhe arremataria.

Pela má compreensão dos sentimentos oriundos das perdas,
Descartava pessoa atrás de pessoa,
Atropelava sentimento em cima de sentimento,
Acumulando objetos inúteis à frente de verdades construtivas,
Verdades que ocupassem de forma invisível (aos outros) o espaço vazio,
Expondo-a aos olhos naturalmente curiosos pelo que é belo.

Escondia-se por trás dos signos de nascimento e ascendência,
Justificando seus receios e endossando os excessos;
Abençoando suas faltas, sua negligencia, seus medos
Sem fundamentos e palavras que a tornassem menos prolixa.

Pelo medo de perder, colocava tudo a perder.
Pelo medo de se apaixonar, se isolava na ilusão
De que é de solidão que melhor se alimentava,
Quando o que de fato buscava era o calor, o fogo,
Não o que queima, mas apenas o que arde e sacia a fome.

Vulgarizava sua fome como sendo intolerável e traiçoeira,
Quando o que precisava era se alimentar
Do único fruto que aplacaria qualquer fome.

Por medo de secar as folhas das árvores e esteriliza-las,
Não levara seus frutos à boca, até que a própria boca transformara-se
Em rocha seca, impermeável e intocável.

Vulgarizara tanto a própria carência em seu vestido justo,
Que sequer notara que ela o vestia com profunda delicadeza.

Mantivera-se nua em pleno inverno mortífero,
Dando aos cortes do indiferente vento a face,
Ao invés de dá-la aos calorosos beijos e afagos
De quem inteiramente e sem receios ou cobranças lhe oferecera alimento.

Não morrera, mas petrificara.

Gustavo Lacerda.

Eu, o Vento e os “Outros”

O vento assopra com sua quase violência as folhas e tudo mais de leve ou semi-leve que encontra nas calçadas e no asfalto.

O vento chega de repente, de surpresa numa dessas esquinas cheias de gente apressada, de gente não preparada para ele. E ele assusta, ele empurra, ele assopra.

O vento não destoa, ele combina. Se o ambiente não lhe é propício, logo o muda. Se no caminho há obstáculos, não mede esforços para arrasta-los consigo.

O vento não pede licença. O vento não se despede.

Num primeiro momento, viro de costas – os ciscos incomodam. As pessoas se movem num ritmo que eu copio. Correm. Desvencilham-se. Evitam-se ao mesmo tempo em que ao vento.

Não sou como essas pessoas que copio. Se fosse, não precisaria copia-las.

Leio que “uns amam muito, uns trabalham muito, uns fazem da vida uma obra de arte, + os outros...”. Eu amo. Eu trabalho. Eu faço da minha vida uma obra de arte? E esses outros?

O vento vem e me mostra quem são esses outros... e eu os copio. Copio suas roupas. Copio seus cabelos. Copio seus hábitos, seus hobbies, suas manias. Copio até os medos, os receios, a forma de falar e as palavras. Tento por que tento me igualar a esses outros que o vento vem e me mostra nessa esquina.

O vento é livre e intenso. Ele vem e me mostra como sua presença incomoda esses outros, como os assusta, como eles se defendem dele e fecham os olhos para não se afetarem.

De costas e olhos cerrados vejo as folhas e outras coisas leves e semi-leves serem levadas pelo vento. De costas e olhos cerrados vejo os outros correndo, se desvencilhando, se evitando e evitando ao vento.

De costas e olhos fechados, percebo que o vento não machuca e tampouco me assusta.

Abro os olhos e me viro contra o vento – não contra no papel de oponente, mas sim de quem quer senti-lo passar, sua liberdade, sua leveza intensa. E, tão de repente quanto sua aparentemente violenta chegada nessa esquina, me percebo como já tendo sido alguém que ama muito e que fazia sim da vida uma obra de arte, mas que hoje apenas trabalha muito e copia os Outros.

Ser como os outros é bom, por que se é bem aceito.

Percebo que o Vento, num sentimento de desespero em torno de minha intenção de condicionar-me ao mero papel de cópia dos outros e na compreensão de que somos por essência idênticos, surgiu violentamente nesta esquina com o intuito de fazer-me enxergar o que nos torna semelhantes: somos livres, leves e intensos.

Sou livre, leve e intensa!

Não sou e nem posso ser uma mera cópia dos outros.

A música estimula meu reconhecimento interior, e caminhamos juntamente com o vento pelas ruas e calçadas de carros e pessoas que se evitam e se copiam sem atinar que o fazem... pessoas que acordam, comem, trabalham, cagam, amam e dormem envolvendo-se com tudo como se não fossem capazes de elevar as emoções além do que os outros são capazes.

No momento, trabalho muito, mas o amor e a arte fazem parte de minha essência livre, leve e intensa. Quero, posso e ei de elevá-los ao ponto de não mais me assemelhar nem mesmo por um instante aos outros, que amam como cagam.

Os outros devem apenas compor o ambiente... e, daqui pra frente, seremos apenas eu, o vento e, em torno e ao fundo, em formas de vultos, os “outros”.


Gustavo Lacerda

(2ª edição - original publicado em 19/05/2009, às 00:30)