22 de mai. de 2009

Molho de Pimenta

A classe a qual pertencia era a mediana. Não era rica. Não era pobre. Não era linda. Não era feia. Não era ingênua. Não era ardilosa. Não era gorda. Não era magra. Era mediana, dessas pessoas que vemos em toda esquina, no ônibus, no metrô, no trabalho. Era comum.

Havia algo em seus olhos... levei anos pra notar que havia algo em seus olhos. A via todos os dias, a via até mesmo onde não estava, em todos os lugares, o tempo todo. Havia, não sei quando – somente que demorei a perceber isso – me apaixonado por ela e tudo o que tinha de tão comum, e que era desbancado logo no primeiro contato com aqueles olhos.

Não sei explicar aqueles olhos.

Estudamos no mesmo colégio, na mesma faculdade, em turmas diferentes. Trabalhamos na mesma empresa, no mesmo andar, em setores diferentes. Almoçávamos todos os dias no mesmo restaurante, mas em mesas e com pessoas diferentes. Em várias ocasiões estivemos próximos, em festas do colégio, da faculdade, da empresa... de pessoas em comum, conhecidos de sexto grau. Eu sempre a via.

Ela era mulher de poucos amigos, de pouca conversa, de raros e tímidos sorrisos, de roupas sóbrias. Era pouco notada, pouco conhecida. Passava em despercebido – não para mim.

Ouvi chamarem-na pelo nome algumas vezes, mas nunca consegui entender – ao menos até o dia do molho de pimenta.

Certa tarde, na área de convivência da empresa, a vi sozinha na máquina de café. Parecia desolada, cansada, deprimida. Estava com cara de largada. Meu coração disparou e uma ânsia aflitiva por consolá-la me fez arrepiar até os pés. Levantei-me como que controlado por uma força invisível, mas tive meu ímpeto contido por um colega que chegou batendo no meu ombro.

Naquela tarde, pela primeira vez, me questionei quanto ao fato de nunca ter me envolvido com uma mulher. Questionei-me quanto ao fato de sempre ver aquela mulher em todos os lugares, até mesmo onde ela não estava. Hum... nem a conhecia, mas a amava. Por um instante, me desesperei... senti medo de nunca mais vê-la – “não suportaria não mais vê-la!”.

A procurei, mas não achei. Tinha que falar com ela...

Encerrado o expediente, fui embora. Sempre passava pelo mesmo caminho até o ponto de ônibus. Estava cansado e distraído naquela noite, e um tanto chateado e ansioso por falar logo com aquela mulher. “Por que diabos nunca falei com ela?!”

O transito estava intenso naquela noite de quinta-feira e seus 34 graus.

Parei numa esquina, esperando o sinal de pedestres ficar verde e, num passe de mágica, eis que ela surgiu ao meu lado. Foi impulsivo: projetei meu corpo para a frente e tomei fôlego – estava disposto a falar. Fui interrompido...

De dentro de um ônibus que passou em alta velocidade, alguém despejou um liquido vermelho nela.
_ Desgraçado! – gritou ela, mostrando o dedo do meio para o ônibus que já fazia a curva. E ela voltou aqueles olhos pra mim, para dentro dos meus. Congelei. – Acho que vomitaram em mim – ela disse com cara de choro, estendendo o braço para que eu cheirasse o paletó.

Eu já agia inconscientemente. Segurei-a de leve pelo pulso, me aproximei e cheirei, sem despregar os olhos dos dela. Não falei nada por um instante. Um sorriso brotou de dentro para meus lábios e, sem medo de represarias por parte dela, limpei com delicadeza, com as pontas dos dedos, um pouco do que havia respingado em seu rosto. “É pimenta. Molho de pimenta.” – falei meio que sussurrando, com rouquidão nervosa e quase imperceptível convulsão silábica.

_ Ah... obrigada! – respondeu ela com um sorriso sem graça, daqueles amarelos, constrangidos, que fazer doer as maçãs do rosto de tanta tensão. O sinal abriu e ela atravessou a rua em largos passos, foi-se embora. Mas dessa vez eu gritei! Dessa vez não deixei simplesmente que fosse! Perguntei seu nome e ela se virou para trás (do outro lado da rua), com cara de quem não entendia nada, e respondeu – É Tereza! – e se foi, engolida pela multidão.

Ela se foi, mas descobri seu nome!

Fui embora e dormi tão satisfeito com aquela aproximação, que perdi a hora no dia seguinte. Cheguei atrasado, porém feliz, no escritório.

Logo que cheguei, percebi alguns burburinhos pelos cantos, caras de fofoca, de noticia ruim. Preferi não perguntar nada. Fui direto para minha mesa.

Foi sorrindo, me lembrando daqueles olhos, que ouvi alguém dizer:

_ Ela tinha só 25 anos. Era ali do RH... tadinha! Teve reação alérgica! O vizinho a encontrou toda inchada e gritando no apartamento. Morreu de parada respiratória a caminho do hospital. Alergia a pimenta, disse o médico. Era Tereza o nome dela, mas nunca a vi.

Meu mundo parou. Levei anos para perceber que amava aquela mulher que nem conhecia. Levei uma vida para tocá-la, e ela morre.

Minha vida deixou de ser vida, e nunca mais vi Tereza.


Gustavo Lacerda

21 de mai. de 2009

Surge o Céu

O chão se abre e de dentro dele surge o Céu,
Com suas verdades divinamente intensas.
Questiono-me quanto ao teor celestial do que vem de baixo,
Afinal, aprendi que abaixo de nós está o Inferno.

O que imaginávamos ser o Inferno, na verdade pode ser Céu,
Disfarçando-se para não atrair a cobiça dos pecadores.
E o que acreditávamos ser o Céu, talvez seja o Inferno,
Disfarçando-se no intuito de atrair os de alma pura para si.

Se o verdadeiro Céu surge
E se revela sob seus pés,
Deve permitir-se a queda,
Deixando para cima o que o iludia.

Se o Céu se ergueu sob seus pés,
É sinal de que o Inferno em breve cairá sobre você.
Aproveite a deixa: Caia!
Não espere o pior acontecer...

Gustavo Lacerda