13 de set. de 2008

Rosa de Prata

Atrás de uma das portas do nono andar de um dos mais decadentes edifícios de Belo Horizonte, daqueles que podem ser encontrados somente no Médio Meretrício, o Bolero de Ravel abafara o som de um crime. No chão, uma poça de sangue só fazia crescer em torno do corpo desnudo de um jovem formoso que devia ter não mais que vinte anos. No corpo ainda havia vida. O jovem agonizava – a dor era tanta que já nem sentia. Estava de bruços, com o rosto voltado para a esquerda.

Uma leve, morna e úmida brisa assoprava lá fora, e, de tempos em tempos, invadia o quarto pela janela entreaberta, quase sem ser notada. A cidade dormia. Era inicio de madrugada de quinta para sexta-feira. Uma enorme e ensangüentada faca de cozinha impunha-se diante dos olhos do moribundo – estava jogada, mas não esquecida, ao lado do corpo pálido, quase sem sangue e sem vida. Aquele que desferira os golpes contra o rapaz ainda estava presente no recinto.

Através do boxe do banheiro, um vulto. O chuveiro estava ligado – era o agressor, que ainda não se havia tornado assassino. Terminado o banho e tendo-se livrado do sangue do rapaz, que lhe sujara dos pés a cabeça, a figura sombria buscou com a mão uma das duas toalhas penduradas na parede para enxugar-se. Saiu despido do banheiro e seguiu para a sala, onde se pôs diante de sua vítima.

O rapaz tinha a pele levemente morena e um corpo escultural. Em toda a extensão das costas, tinha tatuado um anjo de asas abertas. Os cabelos eram castanho-escuros e ondulados, em um tamanho médio, quase à altura do pescoço. As pupilas estavam dilatadas, ofuscando a vivacidade verde da íris. Tinha lábios carnudos, agora pálidos. O vermelho que se mostrava vinha de dentro da boca: era sangue. Na orelha esquerda, um delicado brinco prateado em formato de rosa brilhava sob a luz do abajur.

O agressor vestira-se diante do rapaz. Os olhos, quase sem vida, não o abandonaram por sequer um segundo. Enfiou a arma do crime num saco plástico e guardou-a numa pasta.

___ Você me forçou a isso. – sussurrou o agressor, abaixando-se diante da vítima, com o cuidado de não sujar de sangue os pés ainda descalços. O Bolero de Ravel encerrava e recomeçava alguns segundos mais tarde; estava em repeat. Uma lágrima escorria-lhe pelo lado esquerdo do rosto. Levantou-se e deu alguns passos na direção do aparelho de som; sem teclar stop, ejetou o cd contendo a trilha sonora da atrocidade cometida há pouco e o guardou na mesma pasta em que guardara a arma do crime. Assentou-se na poltrona e calçou-se. Contorceu-se todo para ficar por cima do rapaz sem ter de tocá-lo ou em seu sangue. Sussurrou mais uma vez – Eu te amei, mas você me forçou a isso! Poderíamos ter sido felizes juntos, mas você teve que estragar tudo! Foi tudo culpa sua. Tudo! – e mais algumas lágrimas fugiram-lhe dos olhos. Abaixou-se um pouco mais, apoiando-se na mesa de centro para não cair, e beijou levemente o lábio inferior do moribundo, que já quase não respirava mais, que já tinha aquela respiração breve e pesada que prenuncia o fim. Retirou a pequena rosa de prata da orelha de sua vítima e sussurrou mais uma vez: “Isso eu levo novamente comigo, como recordação do que tivemos juntos, de minha grande desgraça, meu anjo.” – Beijou-lhe novamente o lábio, demorando-se alguns segundos mais dessa vez. Levantou-se, com a delicada rosa de prata fechada na mão direita, pegou a pasta sobre o sofá, desligou o abajur e saiu.

A respiração do jovem tornou-se ainda mais escassa... cessou. Uma lágrima escorreu-lhe a face. Agora aquele era um corpo sem vida. O agressor tornara-se, finalmente, assassino.

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